Natal, como sabem, significa nascimento. No contexto cristão, nascimento da criança Jesus, chamada “Cristo” (do grego Khristós, que significa literalmente “ungido” – prerrogativa dos reis e sacerdotes em que a unção constituía uma consagração).
O termo santo (do latim sanctu / sanctum, que tem a mesma origem etimológica que sanum, saudável) é amavelmente associado à palavra “natal”, em votos que se trocam nesta quadra festiva, em declarações implícitas de uma adesão ao um estado de coisas difusamente religioso, por vezes mais social que religioso – que evoca a crença do nascimento do menino-deus, pleno de bênçãos para toda a humanidade. A quadra festiva, como se sabe, foi tomada das comemorações pagãs do solstício de inverno – a época em que, após a noite mais longa do ano (e dia mais curto), se inicia a progressiva expansão da luz no tempo dos dias que crescem. Especificamente, das comemorações romanas imperiais do Deus Sol Invictus (de invicto, não conquistado, invencível), que constituía um papel fundamental nos mistérios mitraicos, sendo associado ao próprio Mitra, deus solar, salvador da humanidade. Desde os primeiros dias do cristianismo até à contemporaneidade, houve cristãos, como Clemente, ou Orígenes, de Alexandria (e.g. Strommata), que acreditaram plenamente na possibilidade de uma leitura e exegese dos evangelhos simbólica e alegórica. Ao longo da História houve sempre cristãos que não possuíam uma visão antropomórfica de Deus e para quem o termo “Cristo” designava um princípio ordenador universal, de razão e fundamento do universo, da realidade – e para quem esse princípio poderia ser encontrado (poderia “nascer”!) no mais profundo, no mais interior da consciência humana. Essa experiência, poderia tornar-se uma realidade determinante da vida: uma gnosis, no sentido do termo utilizado por São Paulo. A gnosis, enquanto conhecimento de experiência transformadora, é o tema tratado também em diversos evangelhos, epístolas e tratados, escritos nos primeiros dias do cristianismo (sobressaem nomes como Evangelho de Tomé, Evangelho de Maria, evangelho de Filipe, etc.), mas que as vicissitudes do tempo levaram a que não fossem considerados – por questões políticas, sociais e, portanto, teológicas – como canónicos. Na visão alegórica dos evangelhos, a sinopse crística, a narrativa, pode ser observada como um tratado de iniciação cristã, no qual todas as personagens e lugares, designam aspetos observáveis no foro individual, na própria consciência do ser. Todas personagens são aspetos em nós mesmos. Todos os acontecimentos descrevem processos de transformação possíveis de serem realizados na vida do cristão anelante da Realidade divina. Neste contexto, a história de Jesus, desde o seu nascimento, desenvolvimento, morte na cruz, ressurreição e elevação aos céus, constituem-se como “mistérios”, no sentido clássico das escolas e religiões mistéricas. A exegese alegórica tem como ponto inicial o “nascimento” de Cristo no coração de cada um. Ou seja, a tomada de consciência no mais íntimo, de uma realidade, de uma total outra natureza, distinta da nossa própria; contrastante e distinta da do cosmo: absoluta e plena. Mas esta realidade imanente, inicialmente é não determinadora nem determinante da realidade própria da vida diária de pensamentos, sentimentos e ações. Somos nós, cada um em si, que tem de aplicar a sua vontade ao serviço das motivações provenientes desta outra fonte existencial, até que ela venha a ser tudo para nós. Fala-se por isso de uma “nova alma”, de um novo “eu”, simbolicamente, de um novo nome. É necessário portanto realizar uma transformação, uma batalha no próprio sangue, nas próprias tendências de vida, que conduza a uma morte diária por esse “outro”, o “Cristo-em-nós-mesmos”. Seguindo o sentido simbólico da narrativa, esse Logos-em-nós constitui-se progressivamente como um eixo interior, organizador da experiência e dador de sentido à vida. E, se o “combate” contra as próprias tendências for levado a bom fim – a narrativa descreve-o como um mistério do “Gólgota” – fala-se então de uma nova consciência humana: liberta das tendências instintivas e egocêntricas. Uma vida que surge descrita em termos clássicos como verdadeiramente livre e auto-criadora. O autor do presente texto está consciente de que é difícil uma comunicação neutra quando se trata de um tema da religiosidade dominante, filtrado por dois mil anos de fortíssimas opiniões individuais e coletivas e que, qualquer relação do imaginário crístico com processos de transformação de consciência e perceção, pode provocar facilmente reações do sistema imunitário religioso e “anti-herético” e, mais facilmente ainda, fenómenos graves de urticária nas mentalidades laicas, que se consideram fora da esfera gravítica do fenómeno religioso. Porém – a avaliar pelo que lemos e ouvimos por todo o lado –, vivemos uma época em que uma grande parte da humanidade está descontente com o curso de desenvolvimento das coisas e da consciência humana, mas que essa mesma parte da humanidade se sente ignorante, impotente, carente de meios de inteligência para mudar, já não digo o curso dos acontecimentos, mas pelo menos cada um a si mesmo. Caras amigas e amigos, Nesta época – caracterizada por profundos contrastes entre atos humanos que testemunham de profunda consciência, e atos que parecem revelar, na sua inércia de automatismos inatos e condicionados, uma forte ausência dela –, talvez caiba aqui expressar, num renovado sentido, a si que me leu até aqui, os votos de um feliz (e definitivo) natal! Rui Lomelino de Freitas
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